sábado, 27 de fevereiro de 2010

Infância no interior

– Meninos, podem desembarcar! O dinheiro de vocês só deu para pagar a passagem até aqui.

Meu irmão Henrique e eu saímos de Anápolis para passar o fim de semana com nossos pais no Matão, distrito de Anápolis e, sendo despejados da velha jardineira, fizemos o percurso do Sapato Arcado, vilarejo à beira da estrada, até o Matão a pé.

No inicio de 1950, em busca de melhor condição de vida, nosso pai Virginio Santillo arrendou gleba de terra de Messias Antonio Ribeiro, o Chefinho, na região da Mata dos Crioulos, no Matão, importante distrito de Anápolis na época.

Henrique com 12 anos e eu com 10 ficaríamos em Anápolis para continuarmos os estudos. Romualdo, o menorzinho, então com 8 anos, acompanhou nossos pais indo morar na sede do distrito, residência que alugaram do fazendeiro Antônio Periquito. Mesmo determinados a ficar na cidade de Anápolis, acompanhamos a família no dia da mudança. Era um domingo, chegamos ao Matão já no surgir da noite.

Foi uma tarde atípica para os moradores da região. Durante a disputa de uma partida de futebol entre o time local e um visitante das fazendas, os policiais designados pela manutenção da ordem pública no distrito autuaram um cidadão por ter se embriagado acima do normal. Cheio de conversas desconexas e muito extrovertido, despertava a atenção de todos os torcedores. O jogo de futebol, mesmo bastante movimentado, não concorria com o embriagado. Chamado pelos mais importunados, o destacamento o deteve. Não havendo cela na sede do destacamento, decidiram que ficaria amarrado num coqueiro de guariroba, das dezenas existentes na praça ao lado do campo de futebol. O arrocho do seu corpo à guariroba o levou à morte por asfixia.

Retornando à Anápolis na segunda-feira, passamos a morar com um casal de amigos de nossos pais, Filadelfo e Dª Dina. A residência era sede da fazenda existente onde hoje estão os bairros Santa Maria, São Jorge, São Lourenço e Frei Eustáquio. Foi difícil para mim, suportar a saudade da família no Matão. Todas as tardes, sentado no alpendre, ficava o tempo todo olhando a iluminação do distrito, facilmente observado pelo favorecimento da topografia do terreno onde estávamos morando. Foi uma semana difícil de ser vencida. Na escola meu pensamento não saía do Matão.

No sábado, pouco depois das 12 horas, na atual Avenida Goiás, naquela época saída para Matão e Petrolina, estávamos Henrique e eu prontos para seguirmos viagem. Na hora do acerto com o motorista, as moedas de que dispúnhamos não eram suficientes para cobrir o valor das duas passagens. Sem rodeios, o motorista sugeriu que, se nos dispuséssemos a viajar no porta-malas que ficava em cima do veículo, no teto da jardineira, ele nos levaria pelo dinheiro de que dispúnhamos. Não tive dúvida, imediatamente subi pela escada escalando até o porta-malas. Quando Henrique começou a escalada, um passageiro que ficaria no Campo Limpo, gritou com o motorista:

– Seu irresponsável! Como você se propõe a cometer tamanho crime? Os meninos não são malas. Caso sejam acidentados o senhor vai para a cadeia.

Nesse instante, o motorista solicitou que descêssemos e nos colocou para dentro da jardineira. Chegamos ao Sapato Arcado pouco depois de nosso protetor desembarcar em Campo Limpo. Ao descerem mais dois passageiros residentes em fazendas da região, o motorista pediu-nos que desembarcássemos:

– Meninos, podem desembarcar! O dinheiro de vocês só deu para pegar a passagem até aqui.

Descemos e fizemos o percurso do Sapato Arcado, vilarejo à beira da estrada, até o Matão, a pé.

Nosso pai que nos esperava no ponto de ônibus no Matão assistindo a chegada do ônibus e não nos vendo pensou que tínhamos desistido da viagem e voltado para casa. Só bem mais tarde, suados e empoeirados, chegamos a nossa residência. No dia seguinte, domingo, Henrique retornou à Anápolis e eu fiquei com Romualdo, na companhia de nossos pais.

Virginio todos os dias antes de o sol raiar, ia para o trabalho, só retornando após o pôr do sol. Essa rotina o fazia feliz e esperançoso de melhores dias no futuro. Além de cuidar do cafezal do Chefinho, introduziu na região o cultivo de algodão. Buscou sementes selecionadas em São Paulo e fez o plantio de vasta plantação na área da melhor cultura. A plantação se desenvolveu exuberantemente, demonstrando que a safra seria rentável. Quando o produto estava em condições de colheita, tempo seco e de pouca umidade do ar, o pior aconteceu. Alguém que havia colocado fogo no pasto à margem da estrada incendiou todo algodoal, não restando um pé sem ser devorado pela fúria das labaredas.

Henrique que estava de férias da escola o havia acompanhado à lavoura naquele dia. Necessitando de ajuda, nosso pai o colocou no cavalo para que avisasse aos vizinhos. Menino, sem muita prática para lidar com o animal, saiu em desabalada carreira e só parou quando o animal se aproximou da primeira porteira, jogando-o violentamente ao chão. Algum tempo depois um morador das proximidades encontrou Henrique ainda sem sentidos. Felizmente nada mais grave lhe aconteceu. Enquanto isso, toda a plantação de algodão já havia sido destruída pelo fogo.

Para toda nossa família o trauma só não foi maior que o espetáculo humilhante que presenciamos no dia seguinte. Um morador da cidade, bastante conhecido da população inteira, apanhado em flagrante roubando café em coco de um produtor local, foi obrigado pelo delegado de polícia a desfilar pelas principais ruas do Matão, carregando uma saca de café nas costas e gritando:

– Estou fazendo essa penitência porque sou ladrão. Fui apanhado roubando café... Estou fazendo essa penitência porque roubei café... Sou ladrão de café, estou pagando pelo crime que cometi...

Voltamos a Anápolis sem dinheiro, mas com rica experiência. Prontos para reiniciarmos a jornada, carregando muita esperança.

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