domingo, 6 de fevereiro de 2011

Catelan e a modernização cultural

O professor Álvaro Catelan é historiador e grande incentivador da cultura popular em Goiás. Apesar de muito bem votado, não se elegeu deputado estadual nas eleições de 1982. Excelente profissional e profundo conhecedor da cultura e hábitos dos moradores do Cerrado goiano, o convoquei para me auxiliar na Secretaria Estadual da Educação, como diretor da Fundação Culural.

Repleto de ideias inovadoras e motivado pelo desafio, dava gosto ouví-lo discorrendo sobre seus revolucionários projetos para a educação goiana, através da cultura. Defendia, com muita competência e conhecimento de causa, que o estudante goiano, aquele que vive a realidade do nosso Cerrado, não pode aprender o que é ensinado ao estudante do Rio e São Paulo ou dos grandes centros urbanos.

Alfabetizar um estudante do Norte ou Nordeste de Goiás, que conhece veado campeiro, guariroba, tatu-bola, perdiz, codorna, bacuri, cascavel, mama-cadela, tucum, pequi, gabiroba, pau-terra, araticum, aroeira, mata-burro, piquete ou porteira, não pode ser da mesma forma que se alfabetiza garotos das grandes cidades. Nos centros urbanos maiores, os meninos sabem o que são edifício vertical, porta-aviões, metrô, condomínio, Forças Armadas, navios, carros alegóricos, escola de samba e grandes estádios, mas não sabem o que são Cerrado, várzea e igarapé.

Para o morador de Babaçulândia ou Tocantinópolis (naquele tempo pertencentes a Goiás), temos que usar o produto que o menino local conhece: o babaçu. Falar sobre as quebradeiras de côco. Não sobre os esquiadores nas montanhas de neves de Aspen nos Estados Unidos ou da Suíça... Defendia, Catelan.

Para levar à frente seu projeto, o professor decidiu fazer alterações nas posições que alguns auxiliares ocupavam na estrutura da Fundação Cultural. Conversou com o maestro que comandava o departamento de Cultura Popular e Folclórica para que o auxiliasse no comando da Orquestra Sinfônica do Estado, dirigida por outro maestro. Sugeriu ao maestro da orquestra que fosse para a área popular e folclórica. Tinha a convicção que havendo a mudança o trabalho fluiria melhor. Numa nova missão, teriam mais motivação. Depois de exaustivas negociações, certo que tudo estava organizado, foi à secretaria me comunicar a novidade. Deixou para dar coletiva à imprensa depois que tudo estivesse funcionando normalmente.

Dois dias após encerradas as conversações, estava em seu gabinete se preparando para anunciar a revolucionária atividade da sua fundação, quando viu o maestro, o que deixaria a orquestra para dirigir a cultura popular, e todos os componentes da Orquestra Sinfônica, chegando para seu ensaio semanal. A orquestra ensaiava no salão existente na sede da Fundação Cultural. Catelan estava normalmente despachando. Notou que o maestro e os músicos estavam com uniforme de gala. Uniforme usado para suas exibições oficiais:

– Por que uniforme de gala em ensaio ? Catelan questionava a si mesmo!

Todos estavam em seus devidos lugares. Instrumentos prontos para uso. Ouve-se enorme estrondo:

– Bluúúúmmm, ruum, ruum...

Todos os instrumentos foram acionados ao mesmo tempo, fazendo aquele barulhão ensurdecedor. Em seguida a palavra do maestro:

– Amigos, irmãos e companheiros hoje é um dia triste para mim, um homem idealista, coerente e bem intencionado. Nunca pensei que um dia fosse afastado brutalmente do trabalho que amo e para o qual tenho dado o melhor de mim. Me tiraram do comando da orquestra que vi nascer e pela qual dei minha vida. Me afastaram como se afasta um cão vira-latas de um monte de lixo. Amputaram meu braço sem anestesia... Muitas outras coisas foram ditas pelo maestro. Estava decepcionado, amargurado e muito revoltado.

Catelan da sua sala ouvia tudo. Não havia notado em instante algum da conversa que tivera com o maestro, que houvesse por parte dele qualquer resistência às mudanças. Ficou assustado quando, ao mesmo tempo, os músicos gritaram:

– Cadê o homem?

Carregando clarineta, saxofone, violino, flauta, corneta, pandeiro e uma dezena de outros instrumentos, partiram rumo à sala de Catelan. Sem outra alternativa, o professor subiu correndo a Avenida Tocantins, com os músicos atrás. Suado, respiração ofegante, entrou na secretaria da Educação, em minha sala, para relatar o ocorrido. Descobriu que não era muito fácil promover alterações nos setores culturais da sua fundação. Os do sertão goiano continuaram sendo alfabetizados com porta-aviões, transatlântico, aviões de caça... Os maestros ficaram nas posições que os encontrou e as mudanças adiadas para outra oportunidade.

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